Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, não tem nenhuma premiação expressiva na última década. Entretanto, a torcida permanece.
Eu virei à direita, como quem não dá nada, de indolente, mato subindo, o volante foi e pumba, dei com a casa do professor Albonzio. Tirei um croquete do porta-luvas e o agasalhei. A casa do mestre é sempre um lugar mais à direita do que a gente lembra.
Paro em frente ao portão e acendo um cigarro que eu não fumo para me deter no gesto da espera. Seco o suor da testa e com o queixo duro estou prestes a gritar o nome dele: “Desce aí e vamos resolver nossas diferenças”.
Rodo em frente ao sobrado, vagando para que alguém me veja. Fixo o olho naquele que eu sei que é o quarto do casal, fico todo cheio de pose, fumaça pra cima, barba cerrada, jaqueta de couro e outros contos, esperando que, depois do tempo longe, além de me reconhecerem, peçam para entrar e quebrar o pau. Eu vim pela bagaceira.
Um menino sai com o dedo acusatório para a rua. Mal o vi e já soltei Ei garoto, vai chamar o corno do seu pai. Sou um cara mau. E está calor aqui fora.
Albonzio aparece no parapeito e fica ali apertando os olhos de míope, será que se eu mexer mais os braços ele me reconhece. O garotinho volta com os óculos à mão do velho. E ao que o pai da criança coloca as lentes diante de si e me vê, meneia a cabeça, putaquepariu gestual. E aquela cabeça vai crescendo e se alargando até minha garganta:
“Desce aí e vem conversar, se quiser trocar soco, coloca uma bermuda e esconde esse molequinho.”
Ele fecha a janela e eu feito tonto fico bufando, assobiando aquela música que ele mesmo me ensinou.
E o suor vai da têmpora ao maxilar e da têmpora ao maxilar e Albonzio abre a porta. A imagem dele de agora, reinterpreta um viço de quando eu era garoto.
“Senti sua falta, Zézinho.”
A gente fica emotivo quando vê o mestre. Porque a visão daquele cabelo de algodão, pegado na cabeça por força do pensamento dá uma bambeada mesmo nos mais fortes. Quando nos deparamos um com o outro ali na soleira do portão não se prolonga muito a sensação de nostalgia, de modo que mesmo com um passado muito lindo ninguém se abraça. Só vai a ponto de estender a mão mesmo e dizer qualquer ofensa do universo masculino. Mas marejados sim, estamos muito.
As palmas das mãos pra cima se estendiam do portãozinho gradeado para dentro da casa-escola, dizendo entre aqui com os dedos no ar. Eu nunca saí de lá, eu acho. Então não teria como entrar de novo na casa. Sempre estive rodeando os braços e lousas do professor, competindo com o peso do apagador para ver se eu conseguiria, dessa vez, soletrar a palavra scissors. Ou se, de novo, voltaríamos com aquelas ideias de que eu, segundo lugar, tinha perdido alguma coisa tão mais importante que o próprio prêmio, a falsa sensação de quem sabe, acreditar e vencer e vencer enormemente, por mim e por ele, mas ao mesmo tempo ganhado outra, que me acompanharia até onde desse: a vergonha de estarmos no mundo como segundos colocados.
A gente erra muito quando é novo. E nesse dia, no meio de todo mundo, eu errei scissors e chorei pra caramba, porque eu sou sentimental à vera. Ele era professor de inglês e juiz do certame escolar. Não éramos amigos antes disso e não acredito que o fomos depois. Mas ele me trouxe debaixo da asa dele. Eu era o garoto prodígio da aldeia. Ele seria uma das pessoas no meu Arquivo Confidencial e riríamos juntos depois da minha decaída da fama. Juntos, em uma velhice que nossos 15 anos de diferença apagariam, nós dois dando doses homeopáticas de serotonina aos nossos cabelinhos ralos quando revíssemos aquele dia no Faustão. Aí reside a graça da tarefa de professor, poder dizer fui eu que fiz quando dá certo. Todo mestre tem um pouco disso, o prazer infinito de fazer festa com o chapéu dos outros.
Fico pensando no verbo agasalhar e como ele é muito adequado para uma relação como a nossa. Eu perdi aquele dia do campeonato e a gente não se conhecia. Em pouco tempo minha mãe recebeu uma ligação da escola oferecendo um curso de inglês novo, método somatizante, ele dizia. Batata, era Albonzio. Dizia para ela que tinha visto muito potencial no menino, garoto muito bom, só precisa acertar uma coisinha ou outra.
Minha mãe, uma espécie de entusiasta de métodos infalíveis para enganar o inevitável, em dois meses já escutava comigo as lições gravadas em um CD. Nós três dividindo o quarto sala cozinha com uma voz maliciosa a plenos pulmões cantando um the book is on the table misturado com palavras novas, computer, walkman e, também, scissors. Como se tratava de uma experiência pedagógica completa – embora não tivéssemos muita certeza da pertinência do adjetivo completa – o professor também cantava algumas coisas britânicas, incluindo os sucessos Simpathy for the Devil e Moonage Daydream.
Quando vi, passei a frequentar aquela mesma casa à direita do bairro, em que a uma sala de aula improvisada se misturava cozinha e um sofá com uma televisão e um quadro verde. Lousa, material escolar e uma apostila dividiam o tampo com as sobras de um almoço e um violão encostado ao fundo. Aprendi a hablar inglês e que todos estavam muito errados sobre tudo, contra o sistema e a libertinagem. E a gente via filmes como Morte em Veneza e falava do Rei Leão, personagens que me foram incutidos cada vez mais pelo guia do homem de bom gosto, dizendo o que era legal e não era. Aquela pedagogia grega de ser. Não à toa, deixei meu cabelo crescer junto com a inflação e as ideias.
Vivíamos de certo modo isolado, o que fazia com que nossas ideias dessem vazão à geografia. Não tinha no nosso bairro nenhum protesto no passado e a vida seguia mais ou menos da mesma forma com um governo ou outro, segundo Albonzio, mas também naquele agora brasileiro, tudo parecia estar uma merda e a nostalgia convidava à uma reflexão destra: Essa história de perseguição era invenção de hollywood. E as coisas se combinavam paradoxalmente: Jimi Hendrix e Carl Schimitt, José de Alencar e Julius Evola. Fiquei me perguntando nesse milésimo de segundo antes de entrar na casa se essas coisas secretas da infância e pré-adolescência permaneceriam tão secretas e minhas quanto eram.
Ao entrar, vi que tudo estava igual como era antes, muito embora o efeito fosse outro: parecia menor. Eu achava em dado período que aquele sofá era de uma grandeza expansiva e também o quarto dele muito muito enorme à primeira vista. Me larguei na cadeira da cozinha, junto com uma pilha de papéis e lápis e tesouras – scissors – já certo que ela não teria o mesmo conforto que eu sentia lá atrás.
O menino pega um lápis de cor e se senta ao meu lado. Albonzio resmunga aquele catarro da garganta, pigarro como puxão de orelha. Cauê entende e me cumprimenta como se eu fosse um de seus colegas de escola, devolvo e elogio como ele está forte e bonito, parecido com o pai. Albonzio de costas prepara um suco de abacaxi com hortelã e eu fico brincando com o moleque:
“Cauê, não é?”
“Como você sabe?”
“Preciso saber seu nome para te levar pro conselho tutelar depois que eu matar seu pai.”
Albonzio deixa a jarra na mesa e o menino segue seu desenho, coisa verde também que vai ganhando uma forma ininteligível, eu não entendo nada.
O único barulho na cozinha é da gota d’água escorrendo do copo. Fico encarando Albonzio para ver quem fala primeiro. Ele dá dois tapinhas na perna do moleque e sinaliza com a cabeça para que entre no quarto.
“Ainda é um mistério para mim porque você resolveu vir agora aqui em casa, tem anos que não nos falamos, achei que tinha esquecido de mim.”
“Eu vim aqui pra entender algumas coisas, tentar me reconectar com a minha criança interior, estou escrevendo um livro novo e achei importante.”
“Tenho acompanhado as suas coisas na internet. Gostei muito de um texto que você fez sobre um casal de irmãos na casa da avó. Tudo a ver com o momento que estamos passando”.
“Tou com essa ideia de falar sobre o que é o fascimo, a dimensão caseira dele, como adultos geram crianças traumatizadas e vice-versa. Tem um laivo político, mas eu acho que minha obra vai bem mesmo na crítica social. Mas nada muito pesado não, tudo muito aberto, muito bonito. Gosto de gente elegante até nessa hora.”
“Você já comeu? Posso pedir uns pastéis que eu sei que você gosta.”
“Não acho que eles vão chegar até eu ir embora. Só vim ver como as coisas estão.”
A jarra vazia era a testemunha do silêncio. Ele se levanta para ir ao banheiro. Pego a tesoura e o sigo até a cabine.
Da redação: este é o quinto de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. Durante as próximas oito semanas, a Aboio publicará os capítulos seguintes, na melhor tradição do folhetim, toda sexta-feira, às 19h.
As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.